Crônicas

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Viagem distraída


A viagem mais difícil do ser humano não está nos obstáculos das enormes filas da rodoviária do Tietê em pleno feriado.

A viagem mais difícil do ser humano não está em um possível turismo para Marte, nem tampouco se aproximar fisicamente ao Titanic há quatro mil metros de profundidade sem a ajuda de robôs.

A tua viagem mais difícil não está em refutar o passeio de férias da sua filha de 12 anos juntamente com os amiguinhos da escola.

A tua viagem mais difícil está dentro de você, sem pavimentações palpáveis, sem piche, sem cimento, apenas com um pouquinho de audácia e atrevimento.

Audácia e atrevimento.

Audácia, sempre exibida como material abundante nos filmes de heróis e nas figuras históricas que permearam as épocas medievais.

Atrevimento, confundida invariavelmente por petulância, faz parte do conjunto de palavras dúbias do nosso dicionário, mas, em detrimento do texto e do que busco transmitir, prefiro adotar a ideia exata de enfrentamento e confrontamento sem excessiva confiança pela certeza do caminho.

Coragem além da inteligência é usar o coração como instrumento de navegação. Atrevimento além da presunção é amaldiçoar a própria viagem. Audácia além da transposição de medo é desafiar os limites.

O que escolhemos para nós? Qual é o caminho menos ardiloso, menos arenoso e com júbilos e libido constante?

Muitos reclamam soltando ao vento a seguinte frase: “Gostaria de ser livre como um pássaro”, mas quem disse que o pássaro é livre? Ele não escolheu nascer com asas e não pode não deixar de voar, tua vida se resume ao céu por aceitação, a nossa, se resume ao inferno por indagação.

Não aceitamos nossas escolhas. Não sabemos não viver sem reclamar.

Outros balbuciam sobre a falta de dinheiro e a associam estupidamente ao sucesso e aos orgasmos materiais.

Quem nasce em berço de ouro vive com a angústia de perder o dinheiro que tem. Vive com receio de sequestro, convive com a sombra da aproximação por interesse, do amor de alpinistas sociais, vulgo mulheres interesseiras a procura dum porto seguro.

Como ninguém pode ter medo de perder o que não tem, dessa tristeza não morrerei, assim como muitos por aí, creio eu!

Qualquer caminho escolhido será difícil. Não existe moleza. Existe complexidade. A complexidade do básico e o básico está em compreender que somos protagonistas e antagonistas da nossa realidade.

Realidade, sim.

Não substitua o contato pessoal com você, permita-se ao tédio, ele é decisivo para você construir uma vida criativa e quem sabe assim, entender um pouco mais sobre as tristezas inesgotáveis dos caminhos que você escolheu, afinal de contas, a gente não suicida nossos hábitos, nós aprendemos a conviver com eles tal quais os insetos, o tempo quente ou a chuva torrencial do caminho que optamos seguir viagem.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O não pelo perdão


Não. Um dos primeiros fonemas que ouvimos assim que a nossa cognição dá as boas vindas em nossas vidas.

Não.

Um minúsculo elemento sonoro capaz de estabelecer uma distinção de significado entre as palavras, entre as condutas e principalmente entre as permissões.

Sim.

O não pela inaceitação. O não pela ilusão do conformismo confortável. O não pelo falseamento das nossas ideologias.

O não pela própria ideologia, desde que ela seja pura e simplesmente um desejo.

Desejo não concebido, não sanado, não saciado é utopia.

O não pela maquiagem social. O não pelas nossas irrealizações projetadas por nossa ideologia de certo ou errado, desde que a ideologia seja uma condição de dominação.

Ideologia. Vou na onda de Karl Mark: “ideologia age mascarando a realidade”.

O não pela vida não pulsante. Vida morna. Vida inativa. Vida cansativa, compassiva demais.

O não pelo esconderijo do romantismo. Pela chancela de um sorriso. Pelo espanto de um gesto bom.

O não pela abstinência de reforma, não de reforma da cozinha, do banheiro ou do escritório. O sim pela reforma interna e – como diz um excelente livro – o sim pela reforma íntima sem martírio.

O não pelo previsível contínuo. O não pelo automatismo. O não pelo pragmatismo porque tudo que é demais enjoa. Seja de kichute no pé, seja de barco, canoa ou iate, a mesma paisagem deixa de ser uma obra prima pra virar quadro de pintor de Avenida Paulista.


O não pelo perdão. O que não conseguiremos executar nessa vida, postergaremos para a próxima, mas devemos entender que um futuro sem o perdão do passado é a estagnação de um presente sem fim.